GLOSSÁRIO - SEGURANÇA PÚBLICA

O primeiro impulso de quem se dedica a pensar o tema é conceber segurança como ausência de crimes ou violência. Mesmo sendo uma realidade utópica, valeria como referência, modelo ou tipo ideal. No entanto, há duas questões a enfrentar:

(1) crime não existe antes que uma lei assim o defina. O fato, por exemplo, de que beber álcool seja declarado crime não faz com que a abstinência represente segurança, nem para quem gosta da bebida proibida, nem mesmo para os demais, uma vez que a proibição pode significar perseguições, medo e a criação do tráfico de bebidas, como ocorreu na Lei Seca, nos Estados Unidos, na década de 30 do século passado. Por outro lado, e violência é uma categoria cultural muito variável, a depender da cultura e do momento histórico. Além disso, há a violência positiva e a negativa, de acordo com critérios em disputa. Tome-se como exemplo o caso das lutas esportivas ou a circunstância em que um ato violento impede a violência arbitrária cometida contra inocentes.
(2) E se a ausência de crimes retratar a paz dos cemitérios, isto é, resultar da repressão brutal por parte de um Estado totalitário? Alguém se sente seguro sob um regime ditatorial? A resposta é não. Ou seja, o terror do Estado provê a ordem oriunda do medo, a previsibilidade derivada da mais radical insegurança, não a ordem que deriva da confiança, abrindo espaço para o exercício da liberdade e da criatividade. Portanto, é preciso incluir uma mediação entre ordem e segurança públicas: o Estado democrático de direito. É apenas em seu âmbito que ordem e segurança se afinam. Ao trazer o tipo de Estado para o centro das reflexões, afastamos a aplicabilidade do conceito segurança pública às sociedades sem Estado, para as quais não fazem sentido as ideias de lei, polícia e justiça criminal.
Quando indagamos se alguém sente-se seguro numa ditadura, introduzimos uma noção fundamental: a sensação (de medo ou tranquilidade, instabilidade ou confiança, insegurança ou segurança), a qual deriva da percepção que temos sobre as interações de que participamos, sobre o contexto em que nos situamos e as circunstâncias em torno de nós e das pessoas significativas para nós. No fundo, tudo se resume à confiança que julgamos poder depositar nos outros, especialmente naqueles que desconhecemos. Confiar ou desconfiar, este é o segredo. É disso que depende o convívio que denominamos vida social. Estado existe para reduzir a desconfiança, assim como suas instituições que respondem por ordem pública e segurança não constituem, em boa medida, operadores dos sentimentos, na medida em que funcionem como redutores da desconfiança e do medo. Elas são, no modelo ideal, personificações da autoridade, mecanismo que converte medo em confiança. Por que estamos tratando de sentimentos e não da substância da segurança, segundo a visão usual: os crimes e seu controle? Claro que reduzir crimes importa, mas não basta. Longe disso. Senão vejamos: alguém seria capaz de indicar um determinado número de assassinatos como sendo o limite que separa a sociedade segura de outra insegura? A segurança pode ser definida quantitativamente? A resposta seria sim apenas quando o número for zero. Mas desse modo limitamos o conceito segurança pública ao modelo ideal, praticamente irrealizável, salvo excepcionalmente. Claro que quão mais próximo o número fosse de zero, mais segura a sociedade seria, desde que, vale insistir, o contexto fosse o Estado democrático de direito e não o totalitarismo arbitrário. No entanto, como lidar com fenômenos tão comuns que têm a ver com os limites da comparação? Seja a comparação entre os crimes e como cada modalidade de prática criminosa afeta as percepções (as quais dependem dos vínculos de cada indivíduo com os territórios mais vulneráveis e também da natureza das narrativas midiáticas que divulgam os crimes); seja a comparação entre o presente e o passado (ou a memória seletiva) de cada sociedade; seja a comparação entre diferentes sociedades. Focalizando apenas um exemplo: para uma pequena cidade em que nada grave acontece, um homicídio pode disseminar o medo e desencadear comportamentos agressivos que, em nome da autodefesa, terminem por precipitar o efeito que se deseja evitar. Um número considerado assustador em uma cidade pode ser percebido como tranquilizador, em outra, indicando declínio da insegurança. O crescimento de assaltos pode suscitar uma onda de medo e insegurança, mesmo que os crimes contra a vida, os mais graves, estejam em declínio. O que uns percebem, outros ignoram, uma vez que a mídia não trata com equidade todos os casos e que os espaços urbanos são muito desiguais, em todos os sentidos, inclusive quanto à vulnerabilidade à prática de crimes, especialmente os mais violentos. Além disso, a experiência da insegurança pode crescer, contrariando os dados, porque mais gente vai, a cada ano, ingressando no universo das vítimas de um ou outro tipo de crime. Quem já foi vítima não esquece o que sofreu, não deixa de participar do universo das vítimas no ano seguinte, apenas porque não voltou a ser vítima.
De que adianta informar aos cidadãos que se reduziu a probabilidade de que ele ou ela, ou seus filhos, vizinhos, parentes e amigos, sejam vítimas de crime, se permanece negativa a percepção compartilhada, ainda que desigualmente distribuída entre classes sociais, grupos etários e habitantes de áreas diferentes? A confiança não se restabelece simplesmente pela divulgação de números mais favoráveis, até porque probabilidades valem para a coletividade, não para indivíduos. Isso mostra que, ainda que analiticamente seja necessário fazê-lo, no fluxo da vida real, a sensação, fruto da percepção, e os eventos criminais --ou assim interpretados-- são duas faces da mesma moeda, são dimensões inseparáveis, e ambas as faces têm de ser levadas em conta tanto na conceitualização da segurança quanto na elaboração de diagnósticos e de planos de ação institucionais e governamentais. Observe-se que as percepções, ainda que não se fundamentem exclusivamente na identificação de eventos criminais, reconhecem sua existência e lhes atribuem valor segundo escalas próprias e variadas.
A conclusão conduz a uma definição que sintetiza o conjunto das reflexões apresentadas: segurança pública é a estabilização, e a universalização, de expectativas favoráveis quanto às interações sociais. Ou, em outras palavras, segurança é a generalização da confiança na ordem pública, a qual corresponde à profecia que se auto-cumpre e à capacidade do poder público de prevenir intervenções que obstruam este processo de conversão das expectativas positivas em confirmações reiteradas. Compreende-se, neste contexto, por que a postura dos policiais é tão decisiva: seu foco não são apenas os crimes, sua prevenção, ou a persecução criminal, mas também o estabelecimento de laços de respeito e confiança com a sociedade, sem os quais a própria confiança nas relações sociais dificilmente se consolida. Ordem tem menos a ver com força ou repressão do que com vínculos de respeito e confiança.

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