O primeiro passo para “coisificar” alguém é esquecer sua individualidade e sua personalidade, escondendo-a sob um rótulo, uma categoria, um estereótipo.
A lógica do preconceito, da discriminação e da opressão envolve sempre uma generalização e, frequentemente, está enraizada numa cultura que tende a ver o outro como “algo” e não como “alguém”, como coisa e não como sujeito de direitos.
O primeiro passo para “coisificar” alguém é esquecer sua individualidade e sua personalidade, escondendo-a sob um rótulo, uma categoria, um estereótipo. É mais fácil odiar e desprezar algo, pertencente a uma categoria qualquer, do que alguém, um ser humano como nós.
Os órgãos de segurança pública (ou os policiais?) historicamente foram sendo associados generalizadamente ao abuso de autoridade, à violência e à perseguição contra pessoas desamparadas pelo Estado. Pessoas que foram coisificadas em categorias como escravos, hereges, vagabundos, subversivos, bandidos, pederastas, etc. Não foi à toa que se construiu um certo antagonismo entre policiais e defensores de direitos humanos.
Com a reinstauração de um regime constitucional democrático em 1988, começamos a construir uma sociedade alicerçada em novos valores sociais e em outras bases jurídicas. O Estado de Direito exigiu que os órgãos policiais fossem refundados sob a perspectiva da defesa das pessoas e não mais do Estado. A segurança pública, segundo o art. 144 da Constituição da República, é um “dever” do Estado, e não uma ferramenta para a manutenção do “status quo”.
Antes de ser um agente público, o policial é um integrante da sociedade, um cidadão com direitos e deveres como os de qualquer outro. Ele não é diferente de seus vizinhos e conterrâneos, apenas o seu trabalho é peculiar. Não há mais razões para a dissociação entre polícia e defesa dos direitos humanos.
Pelo contrário, é hora de reconhecer o papel fundamental do policial como um importante defensor e promotor dos direitos humanos, ainda que, como qualquer detentor de parcela do poder estatal, esteja sempre a um passo de cruzar a linha de suas prerrogativas legais para tornar-se um violador desses direitos.
Vivemos novos tempos. Mas ainda há traumas. E esse sentimento faz com que algumas pessoas esqueçam-se de uma dimensão comum aos policiais: a de “sujeito” de direitos humanos.
Nenhum cidadão adquire superpoderes nem perde seus direitos individuais e suas garantias fundamentais quando é aprovado num concurso e assume um cargo público de policial. Porém começam a ocorrer contra policiais injustiças graves como aquelas produzidas sob um regime de exceção. Hoje há pessoas que olham para um policial e veem nele uma coisa, um “inimigo”. Coisas não sentem dor nem têm caráter, e os inimigos não têm os mesmos direitos que os amigos.
O malfalado Direito Penal do Inimigo é uma doutrina que propõe, “grosso modo”, distinguir as pessoas entre “cidadãos” e “inimigos”, para retirar destes diversos direitos e garantias fundamentais. Inverte-se a presunção de inocência, minimiza-se o direito à liberdade, apressa-se a condenação, restringem-se as vias recursais, etc. É, praticamente, um linchamento judicial.
Pois policiais começam a ser vítimas de coisificação. Muitas vezes suas atitudes são tidas, desde logo, por ilícitas, até que o juiz se convença do contrário. Ele é culpado até que prove sua inocência. Algumas vozes conhecidas na doutrina jurídica chegam a afirmar o absurdo de que a prisão cautelar de um policial suspeito sempre se justifica “a priori”, pelo risco que ele representa simplesmente por ser policial. Prende-se pelo que ele é, não pelo que ele fez. Talvez porque ele seja o “inimigo”.
Lamentável é não somente a injustiça contra um indivíduo policial, mas também o surgimento de um novo fator que contrapõe policiais e direitos humanos e cria uma lógica perversa: quando os policiais não são violadores, eles são vítimas de violação por parte do restante do aparato estatal, esquecidos pelos defensores dos direitos humanos porque não se enquadrariam na categoria de vítimas. Existe uma outra categoria de coisas chamada misteriosamente de “sociedade civil”, a qual pressupõe que os policiais não a integram. Haveria, quiçá, uma “sociedade militar” ou uma “sociedade policial”?
É preciso descoisificar os policiais, reconhecendo-os como cidadãos comuns, que foram selecionados no seio de nossa comunidade e que abraçaram sua vocação para servir às pessoas. Dessa forma, evitaremos segregá-los numa “sociedade” paralela e inimiga. Isso porque somente garantindo os direitos individuais dos cidadãos policiais é que será possível consagrarmos seu incalculável potencial de defensor e guardião dos direitos humanos.
by PRF Estima – 11ª SRPRF/PE
0 Comentários
Deixe aqui sua opinião acerca da publicação acima.