Em nome da igualdade

 
Rigor na análise das mortes decorrentes da atuação policial, o Estado e o princípio da igualdade* 
 
(...) para cada quatro pessoas mortas em confronto com a polícia no Brasil, um policial é assassinado (...). BBC Brasil – 16.9.2014 
 
Os organismos públicos e entidades não governamentais têm divulgado dados que apontam aumento do número de pessoas mortas em conflito com policiais.
 
Os mesmos órgãos relatam aumento da criminalidade em geral, com atenção aos delitos praticados com violência à pessoa (roubo, estupro, sequestro relâmpago, violência doméstica, etc).
 
A imprensa, quase diariamente, também noticia aumento da morte de agentes do Estado, com maior índice para a morte de policiais militares.
 
Em meio a esse cenário, Promotores de Justiça de todos os Estados do país, em virtude do projeto “O Ministério Público no enfrentamento à morte decorrente de intervenção policial”, do Conselho Nacional do Ministério Público, estão a receber a incumbência de acionar as autoridades policiais de suas Comarcas, apenas com questionário acerca da forma específica da ‘morte decorrente de intervenção policial’.
 
No questionário, há indagações variadas, como o nome do agente público, a arma utilizada, o calibre, a presença ou ausência de delegado no local da ocorrência, a realização de necropsia, o órgão a que pertence o agente, a situação de estar de folga ou a trabalho, entre outras.
 
Um dos fundamentos legais para essa ação está a ser o disposto no art. 128 da Constituição Federal, que traça ao Ministério Público o desempenho do controle externo da atividade policial.
 
No expediente recebido, há consignação de que “visando o efetivo Estado Democrático de Direito, se faz necessário o compromisso de empreender esforços para combater o ‘auto de resistência seguido de morte’, por meio de iniciativas que garantam que toda ação estatal que resulte em óbito tenha a sua específica investigação policial e reduza o uso desmesurado da força policial”.
 
Diante do panorama nacional citado no início desse texto e, nada obstante realmente haver o dever do próprio Estado e sociedade analisar a atuação dos seus agentes, não poderia deixar de tecer algumas considerações sobre essa aparente restrição da atuação ministerial.
 
Ao ser cobrada análise mais rigorosa das “mortes decorrentes de intervenção policial”, entendo que deve haver, também, de forma paralela, maior intensidade da análise de “mortes decorrente de atuação de criminosos em face de agentes do Estado.”
 
Conforme a rede de notícia BBC Brasil, para cada quatro pessoas mortas em confronto com a polícia no Brasil, um policial é assassinado (clique aqui) .
 
A Constituição Federal estampa em seu art. 127 que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
 
Diante dessa ordem jurídica a ser preservada, reza o art. 5º da Constituição que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”
 
A Constituição, ainda, em seu art. 1º, inciso III, regra que nossoEstado Democrático de Direito tem entre seus fundamentos a “dignidade da pessoa humana”.
 
Essa dignidade humana, certamente, refere-se a todos os seres humanos, seja ele o cidadão isoladamente considerado, seja ele o cidadão agente do Estado.
 
Assim, lembrando que somente haverá preservação da ordem jurídica se o Estado Democrático de Direito existir, é corolário básico dessa premissa que, para que o Estado possa preservar e proteger os direitos dos cidadãos, ele, Estado, também deve estar protegido e preservado.
 
Como, então, atuar na luta pelos direitos de seus cidadãos, que abdicaram da autotutela em favor de uma atuação imperativa do Estado, se ele próprio, o Estado, está a ser diariamente aviltado, ofendido e fragilizado por ataques das mais variadas ordens, por diversos tipos de criminosos?
 
Dentre as diversas formas de ataques sofridos pelo Estado (desvios de dinheiro, uso indevido de seus bens e serviços, etc), centrando-se na discussão do texto, está o intenso e crescente número de assassinatos de seus agentes.
 
Desse modo, mais que importante, é devido também se proceder à mesma cobrança de detalhamento sobre as investigações acerca das mortes promovidas contra os agentes do Estado (policiais militares, civis, federais, agentes penitenciários, promotores, juízes, etc).
 
Somente com tais dados será possível saber suas causas e, principalmente, de forma otimizada, profissionalizada, sistêmica, inteligente e eficiente, o Estado agir para mudar essa situação.
 
Também é preciso lembrar que, sempre que se postulam medidas de fiscalização, controle, análise e medidas, deve haver – com antecedência - a estruturação física e pessoal dos órgãos incumbidos dessas missões, sob risco não apenas de não se conseguir alcançar tais objetivos, como também de sacrificar outras atuações inerentes e devidas à função.
 
Nesse aspecto, com vista sempre ao melhor para a sociedade, importante que no cumprimento de referido projeto, não se olvide o mesmo tratamento (isonomia) de rigor na investigação de todas as formas de morte!
 
Que haja a mesma cobrança e medidas para as investigações sobre as mais de 50.000 mortes anuais neste solo nacional, seja de vítima de ação policial, seja de vítima de assaltante, seja de vítima de violência doméstica, seja de vítima de briga de trânsito, seja de vítima de disputa de território, seja vítima de milícia, seja o homicídio que for.
 
O Brasil possui a 11ª maior taxa de homicídios do mundo, em uma relação de 194 países, segundo a Organização Mundial da Saúde.
 
Esse índice é maior que muitas regiões em guerra!
 
Todo ser humano, em sua memória e em respeito a seus familiares, bem como à sociedade em seu direito de não ver indevidamente retirado de seu convívio um cidadão, têm direito da atuação eficiente do Estado, nos termos da Constituição e tratados internacionais pactuados e aceitos pela República Federativa do Brasil.
 
Não podemos criar a ideia de que toda morte promovida por um agente do Estado, seja ilegal ou acobertada pela lei (legítima defesa, etc), terá maior e melhor atenção dos agentes investigadores do que a morte promovida por um criminoso frente a um cidadão qualquer.
 
O brasileiro não pode receber a mensagem de que, por exemplo, em caso de assassinato de um ente querido em um assalto, essa morte tenha investigação relegada a uma segunda classe, por não se tratar de morte praticada por um policial.
 
Claramente que não é essa a ideia do projeto; contudo, o senso comum, aliado a onda de impunidade e tanta intempérie de injustiça que se vê assolada a população, não é demais lembrar que será essa a noção e sentimento a serem gerados.
 
Por essa via, espera-se que haja realmente avanço e aperfeiçoamento rumo à efetividade da preservação dos direitos humanos, mormente perante esse aumento de homicídios; contudo, que todos os seres humanos sejam atendidos, de forma igualitária!
 
Não for assim, cada vez mais essa expressão – direitos humanos – será associada somente a uma parcela da sociedade, gerando descrença, falta de apoio, repulsa e, claramente, sentimento de inversão de valores, às pessoas nela não inseridas.
 
Ante o exposto, que fique a sugestão ao Conselho Nacional do Ministério Público para que, de forma rápida e ampla, acrescente projetos com olhares também aos agentes do Estado vítima e demais formas de mortes praticadas diariamente nesse país!
 
*Por Fernando Martins Zaupa, Promotor de Justiça em Campo Grande/MS.

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