FHC defende descriminalização do usuário de drogas

Separados por quase 30 anos de idade, o boliviano Jorge Quiroga, de 54 anos, e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso (PSDB), de 83, foram presidentes de seus países à mesma época. Quiroga presidiu a Bolívia por um ano, entre 2001 e 2002, momento em que a produção de cocaína em seu país começava a crescer em alta velocidade. FHC, presidente de 1995 a 2002, governou o Brasil também num momento estratégico para o tráfico de drogas no continen
te, quando o consumo cresceu e o Brasil se consolidou como principal entreposto da cocaína que saía do Peru e da Bolívia e seguia para a Europa. As convergências, no entanto, param aí. Os dois, que já lideraram as guerras contra as drogas em seus territórios, discordam como devem ser escritas as próximas páginas dessa história.
Na semana passada, o EXTRA mostrou que traficantes de Bolívia, Brasil, Paraguai e Peru conseguiram, nos últimos 14 anos, formar o Narcosul, um bloco voltado para o tráfico de drogas, com integração superior à de seus países de origem. Em entrevistas exclusivas, concedidas em La Paz e São Paulo, respectivamente, Quiroga e FHC defenderam seus pontos de vista. O primeiro acredita que a repressão ao consumo e à produção deva ser reforçada. Já FHC propõe a descriminalização do usuário e a regulação da produção.
À frente da Comissão Global sobre Drogas, grupo formado por ex-presidentes e autoridades que propõem uma nova abordagem para o tema, Fernando Henrique poupa críticas ao governo federal, e avalia que a sociedade evita a discussão:
— A maioria do PSDB também pensa diferente de mim. Acho que não é um tema eleitoral, deve ser discutido fora das eleições.
Já Quiroga dispara críticas a Evo Morales, a quem faz oposição. O embaixador da Bolívia em Brasília, Jerjes Justiniano, afirmou que seu país é sério no combate:
— A Bolívia tem dificuldades, mas não existe nenhuma tolerância com a produção de cocaína.
Leia abaixo a entrevista com Fernando Henrique Cardoso.
Por que o senhor defende a descriminalização dos usuários de droga?
Descriminalização significa não colocar na cadeia o usuário. O responsável pela política de drogas em Portugal me disse: “Olha, não adianta descriminalizar uma e não outras”. Se você começa a botar na cadeia e transformar o uso de drogas em caso de polícia, você vai estigmatizar, vai dificultar o tratamento, que é o indispensável. Então, vamos descriminalizar. Descriminalizar não é igual a legalizar. É não pôr na cadeia quem usa droga, porque, se ele for para a cadeia, vai usar outras drogas mais pesadas e vai aprender outros crimes.
Na cadeia, o acesso é mais fácil...
Não há cadeia sem droga, o que já é absurdo. A comissão vai publicar um novo relatório, em Nova York, em setembro, para enfatizar a importância da regulação. Não é a liberação. Mesmo a maconha, que pode ser considerada menos daninha até do que o álcool ou o cigarro, deve ser regulada. Aí é que deve-se fazer campanha contra, como se faz com o cigarro. Houve uma queda enorme do consumo de cigarro no Brasil, e não foi proibido. A comissão defende a regulação e não só descriminalizar e deixar largado.
A política repressiva falhou?
A política repressiva foi proposta, todo o mundo sabe, basicamente pelos Estados Unidos, que se esqueceram do que aconteceu com a Lei Seca (entre 1920 e 1933, o governo americano proibiu a venda, a fabricação e o transporte de bebidas alcoólicas), que provocou o gangsterismo e deu origem a máfias. A política repressiva não tem sido capaz de conter o consumo nem a produção de drogas. Eu conversei com o general responsável pela repressão do tráfico na Colômbia. Ele disse o seguinte: “Nós estamos matando traficantes, mas nós não estamos acabando com o narcotráfico, porque, para cada um que morre, vêm outros. E por que vêm outros? Porque o mercado é tão atraente, ganham tanto, que sempre tem gente disposta a se arriscar”.
Quais foram os efeitos da repressão, então?
Ela gerou um desastre enorme, no que diz respeito à falta de consideração, atenção, redução de danos para os usuários. E no que diz respeito àqueles que não têm nada a ver com o assunto e que sofrem as consequências quando há uma repressão muito violenta. Até mesmo no Rio de Janeiro era assim. A polícia entrava e matava, ou batia indiscriminadamente, em quem era traficante e em quem não era. O usuário não é um criminoso. A política deve ser mudada. Isso não quer dizer que você tem de deixar os traficantes operarem, obviamente. Mas há maneiras mais sofisticadas. Há os paraísos fiscais, por onde eles manobram. Por que não se combate os paraísos fiscais? Há que se reduzir o consumo, com campanhas educacionais. E distinção, pois nem todas as drogas têm o mesmo efeito. Depende do indivíduo e da droga.
O senhor é a favor da liberação da produção da maconha?
A minha posição pessoal é de que é melhor ter a regulação do que a proibição. Se você for consequente com a descriminalização, provavelmente vai ter que ter alguma forma legal de produzir.
Quem advoga pela liberação da produção lembra do aumento no recolhimento de impostos, a exemplo do que tem acontecido no Colorado, estado americano que autorizou.
É um raciocínio que os economistas gostam, mas eu acho perigoso, porque o fundamento aí é uma questão de saúde pública. Você dizer: “Bom! Aumentou mais imposto com o cigarro”. Você vai comemorar? Está vendendo mais cigarro? Isso eu não acho que seja razoável.
Se o Brasil fosse descriminalizar o uso de todas as drogas, o que deveria ser feito antes?
Educação, prevenção, campanha explicando.Que as pessoas discutam. Discutam em casa o que é isso, os males que pode causar. Também não é transformar isso num bicho-papão. Só porque fumou maconha, está discriminado.
Por que, no seu governo, o senhor pensava diferente?
Eu imaginava que fosse possível erradicar a maconha. Tentamos erradicar no quadrilátero da maconha em Pernambuco. O que acontecia? Ela voltava. Não é possível erradicar. A explosão da violência na América Latina, devido ao tráfico, não ocorreu no meu governo, e contribuiu para que eu visse a questão de outra forma.
Como, na sua opinião, os governos estaduais e federal estão lidando com o tema?
Rio e São Paulo têm tentado avançar, ou seja, não usar a mera repressão. No Rio, a crítica que se faz é que a UPP chega lá, mas faltou depois o Estado entrar. Faltou hospital, assistência social, emprego. O governo federal acompanha a sociedade, que não quer discutir o tema.
Como o senhor vê a cooperação do Brasil com seus vizinhos?
Eu acho que os governos sempre têm limitações de (conseguir) integração nessa matéria. Os traficantes não têm essa limitação. Eles são mais internacionalizados. Eu não acredito que se vá avançar muito, não, pois os interesses são contraditórios, muitas vezes. E porque a eficácia dos mecanismos integradores, infelizmente, não foi muito grande, nem mesmo no Mercosul.
O senhor já experimentou alguma droga?
Eu? Nada. Eu não fumo cigarro, nada. Nunca traguei um cigarro sequer e bebo pouquíssimo. Tenho 83 anos, a minha geração era do lança-perfume, e nem isso eu cheirei.

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