Pelo menos dois PMs morrem por mês, como o soldado André Neves, assassinado ao tentar impedir um assalto no dia 16
por Glória Tupinambás, Carolina Daher e Thiago Alves | 28 de Maio de 2014
Diego Neves, com os pais, Elizabeth e Valter Luiz: a família da vítima mais recente
A farda marrom muito bem passada está pendurada no cabide. Na prateleira do guarda-roupa, a boina preta, o colete à prova de balas e o cinturão dividem espaço com o coturno já engraxado. Mas nada disso sairá do armário. Nunca mais. Em poucos dias, estará empoeirado em um canto do quarto do soldado André Luiz Lucas Neves. Assassinado com dois tiros (um no peito e outro nas costas) ao tentar impedir um assalto no último dia 16, no bairro Ouro Preto, na região da Pampulha, o policial militar de 27 anos estava de folga, à paisana, quando presenciou o crime e tentou intervir. A dor que agora dilacera o coração de parentes e amigos de Neves é velha conhecida de muitas famílias de PMs, como as do soldado Anderson Vieira Torres, do sargento Silmar Pereira da Silva e dos cabos Paulo Henrique de Oliveira e Gladstone Alexandre Soares Bernardo, outros quatro militares que deram a vida pela profissão e cujas histórias ilustram esta reportagem. De acordo com o Comando-Geral da Polícia Militar, 33 homens foram executados nos últimos cinco anos enquanto estavam em serviço - só neste ano foram quatro. Os números são ainda maiores nos registros da Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas Gerais (Aspra-MG), que considera não apenas as baixas durante o expediente, mas também as dos que morreram tentando combater a criminalidade em momentos de folga, como o soldado Neves. Foram mais de 300 mortes registradas no estado nos últimos onze anos, pelo menos duas a cada mês.
A violência contra os policiais é, há tempos, motivo de indignação dentro da corporação, um sentimento que explodiu após o episódio no bairro Ouro Preto. Depois do enterro do soldado, cerca de 1 200 militares foram às ruas para protestar, no último domingo (18), cobrando, principalmente, uma pena maior para crimes cometidos contra agentes públicos de segurança e a criação de um programa de proteção para PMs ameaçados. “A morte não tem de ser um risco inerente ao nosso trabalho”, diz o deputado federal Luiz Gonzaga (PDT-MG), que é subtenente e coordenador da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Aspra-MG. Ele critica a atuação do Estado nos casos de assassinato de militares que, estando à paisana, agem contra bandidos. “Essas reações fazem parte do instinto policial, não é preciso estar fardado e escalado para o trabalho para entrar em ação”, afirma Gonzaga. “Somos PMs 24 horas por dia, e não atuar em um caso de perigo iminente é uma negligência. O policial pode até ser responsabilizado por deixar de agir.”
Além de manifestações nas ruas da capital, a comoção provocada pela morte de Neves motivou uma reunião em Brasília, na última terça (20), entre o Comando-Geral da Polícia Militar de Minas Gerais e o Ministério da Justiça. A pauta do encontro foi a dificuldade de manter os criminosos atrás das grades. Os três envolvidos no assassinato de Neves, por exemplo, têm, juntos, mais de trinta passagens na polícia. A ficha criminal mais longa é a de Wilson Guimarães Filho, de 25 anos - são 21 registros por delitos como roubo, receptação, porte ilegal de arma de fogo, ameaça e homicídio culposo. José Henrique da Silva Bento, de 30 anos, que confessou ter sido o autor dos disparos, tem nove passagens pela polícia. E Ítalo Pedrosa de Souza Júnior, de 22, que morreu na troca de tiros, tinha quatro. “Estamos pagando, com nossa vida, o preço pela impunidade”, diz o comandante-geral da PM, o coronel Márcio Martins Sant’Ana. Ele propôs ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, uma mudança no sistema de investigação dos crimes de menor potencial ofensivo. A ideia é que esses casos sejam encaminhados pela Polícia Militar diretamente à Justiça, sem a necessidade de passar pelos trâmites da Polícia Civil. Segundo o coronel, a medida daria mais celeridade aos processos e evitaria que viaturas e equipes de militares perdessem horas de trabalho na fila dos registros de ocorrências nas delegacias. “É preciso senso de urgência na aplicação do direito penal no país.”
Marchando em protesto por Belo Horizonte, o que esses militares querem é que a família deles possa sentir orgulho do ofício que escolheram - e não o medo que assombra a merendeira Maria do Carmo Aparecida Torres, de 55 anos. Quando os alunos da escola em que trabalha falam que querem ser policiais, ela se arrepia. “Digo a eles para não cometerem esse erro, ninguém sabe o que a família de um PM sofre”, conta ela, que enterrou o filho, o soldado Anderson Torres, aos 29 anos, em 2008. Maria do Carmo não conseguiu fazer o seu menino desistir da ideia de entrar para a corporação. “A paixão dele era proteger e defender o próximo.” Aqueles que seguem essa vocação merecem a nossa admiração. Quando morrem em combate, merecem o nosso luto.
Profissão perigo
As estatísticas dos assassinatos de PMs expõem a insegurança no exercício do ofício
43 500 é o total de policiais militares em Minas Gerais
300 foram executados no estado desde 2003, de acordo com a Aspra-MG
33 deles foram mortos em ação nos últimos cinco anos, segundo a PM
2 mortes por mês é a média de assassinatos da última década
Em trinta anos de trabalho como bombeiro, Valter Luiz das Neves presenciou tantas tragédias, acidentes e fatalidades que acreditava ter o coração calejado. No último dia 16, no entanto, quando o telefone tocou com a notícia de que seu filho, o soldado André Luiz Lucas Neves, havia sido assassinado ao tentar impedir um assalto, ele viu que não estava tão blindado contra a dor. “Eu não tinha noção da grandiosidade desse sofrimento”, afirma. A duras penas, ele e a mulher, Elizabeth, tentam superar o trauma da morte do filho, um cruzeirense que adorava rock. “O André sempre falava dos ídolos dele que morreram aos 27 anos, como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Amy Winehouse”, lembra o irmão, Diego. “Por uma trapaça do destino, ele nos deixou com a mesma idade.” A mãe do soldado espera que sua morte não tenha sido em vão. “Ele não pode ser apenas mais um na estatística”, diz. “Esse crime tem de ser símbolo da luta contra a impunidade e a violência.”
O coração da auxiliar de ensino Dulcinéa Soares Bernardo, de 64 anos, dispara quando o telefone toca. Nesses momentos, ela sempre se lembra das ligações do filho Gladstone Alexandre Soares Bernardo, que costumava telefonar pedindo a ela que colocasse mais água no feijão. Dulcinéa, que passou por duas angioplastias nos últimos seis meses, nunca mais ouvirá a voz de seu primogênito - nem poderá satisfazer os desejos dele. O cabo da PM morreu, aos 39 anos, após ser baleado quatro vezes durante uma perseguição policial em junho de 2012. “Não gosto de sair de casa por receio de encontrar um militar fardado e relembrar a insuportável dor da perda do meu menino”, conta, com os olhos marejados. Bernardo deixou dois filhos: Ana Clara, de 13 anos, e Pedro Lucas, de 11.
Nos anos 50, o vendedor José Augusto de Oliveira viu seu pai, um militar da cidade de Curvelo, entrar em casa com a camisa encharcada de sangue e morrer na sala, diante da família - uma lembrança difícil de apagar. Mais duro ainda é superar outro trauma: o enterro de um filho, o cabo Paulo Henrique de Oliveira, morto durante uma operação policial no bairro Califórnia, em 2007. Aos 31 anos de idade (dez deles dedicados à PM), o rapaz foi atingido durante um tiroteio em uma operação de combate ao tráfico de drogas. “A bala pegou de raspão no colete e o atingiu debaixo do braço”, lembra o vendedor aposentado. A mãe, Edite Maria Oliveira, marca, em um calendário, cada dia que passa sem poder abraçar o filho, que ela chamava de Pola. “Já são mais de 2 500 dias sem ver o sorriso dele”, conta. “Meu coração não tem mais forças para isso.”
É difícil para a funcionária pública Maria do Carmo Aparecida Torres, de 55 anos, preparar arroz-doce e broa de fubá, as guloseimas preferidas do filho Anderson Vieira Torres. Soldado do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam), Torres foi morto em 2008, durante um tiroteio com traficantes no bairro Goiânia. “Naquele dia, eu perdi meu irmão e meu melhor amigo”, afirma o agente de saúde Marcos Paulo Torres, dois anos mais velho. Desde menino, Torres queria ser policial. Aos 7 anos, era escoteiro. Quando ingressou na corporação, em 1999, batalhou para ir para a unidade. “Ele gostava mesmo era de trabalhar na rua”, lembra o pai, Paulo Afonso Vieira Torres, de 58 anos. Ele ainda guarda com carinho a farda baleada e a bandeira do Brasil que cobriu o caixão do filho no dia do enterro. “Ele foi um herói”, diz a mãe, Maria do Carmo. “Cumpriu sua missão na vida como um bom combatente.”
Parecia tudo perfeito para o aniversário de 15 anos de Bruna Larissa Silva, em outubro do ano passado. Mas, quando os convidados começaram a chegar, seu pai, Silmar Pereira da Silva, percebeu que havia esquecido o salgadinho preferido da filha, o pastel de pizza. Ele saiu correndo para ir ao supermercado, no bairro Jardim Guanabara. Ao chegar ao caixa, Silmar, que era PM havia vinte anos, notou uma movimentação estranha, típica de tentativa de assalto. Num impulso, reagiu e foi atingido por um tiro na cabeça. “Há seis meses essa dor nos perturba”, conta a viúva do sargento, Lidia Pereira, que cobra a investigação para descobrir os autores do crime. A família já sofreu ameaças e precisou mudar de endereço por três vezes. Apesar do trauma, as filhas, Bruna e Rafaela, de 12 anos, continuam pensando em seguir carreira militar. “Elas querem ser heroínas como o pai, e eu vou gastar meu joelho em orações”, diz Lidia.
*FONTE VEJA BH
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