Crime em lugar do Estado: como o PCC pretende dominar o Brasil

Enquanto essa reportagem é escrita, desenrola-se no estado de São Paulo um ambicioso plano liderado pela cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) com objetivo de resgatar seu líder máximo, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, da Penitenciária II de Presidente Venceslau, distante 600 quilômetros da capital paulista.
Relatório do setor de inteligência do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, ao qual a CartaCapital teve acesso, mostra a arquitetura do plano e a audácia dos criminosos. Dois integrantes do PCC fizeram treinamento de pilotagem de helicópteros, vários sobrevoos já foram realizados para avaliar os detalhes da tomada de assalto da penitenciária, um imóvel foi alugado na cidade vizinha de Porto Rico (PR) para servir como base de apoio à operação e uma pista de pouso foi mapeada para que um avião vindo do Paraguai possa aterrissar.
A operação de resgate teria seu start com a visita de um advogado do grupo ao PII. Informados, Marcola e dois companheiros aproveitariam o alvoroço causado pela ordem de uma rebelião para cerrarem as grades de suas celas e caminharem até o pátio do presídio, de onde seriam içados por um dos helicópteros. Já resgatado, Marcola seria levado até o aeroporto de Loanda(PR) e, de lá, partiria em um avião Cessna Aircraft, modelo 510, pilotado por um integrante da facção, 
para o Paraguai.
Essa não é a primeira afronta do PCC às forças de segurança de São Paulo. O grupo criminoso já matou um juiz, diretores de penitenciárias, inimigos, ameaçou assassinar o governador Geraldo Alckmin e promete parar a Copa do Mundo caso seus líderes sejam enviados ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Mais que expor o poderio e coragem da facção, o plano de fuga suscita questionamentos sobre como o PCC deixou de ser uma gangue de presídio para, em menos de 20 anos, se tornar uma organização criminosa pré-máfia. Retorna ao debate também, assim como em 2001 durante a megarrebelião e, em 2006, por conta dos ataques que pararam a capital paulista e diversas cidades do estado, o papel de Marcola, líder máximo do PCC. Como um detento conseguiu criar um modelo de gestão/ideologia do crime organizado capaz de unir a massa carcerária paulista em torno do lema “Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade” e regular as relações sociais dentro dos presídios enquanto lucra milhões com o tráfico de drogas? E vai além, por que a expansão exponencial para outros estados do país leva um promotor, que há quase dez anos investiga o PCC, a cravar: “A tendência é acontecer o que aconteceu em São Paulo, uma hegemonia do PCC em todos estados da nação”.
Até aqui, a história do PCC divide-se em três momentos. O primeiro começa em 1993. No presídio de Taubaté, interior de São Paulo, se dá a criação do bando em resposta às péssimas condições do sistema penitenciário paulista e aos excessos de violência praticados pelas forças de segurança contra detentos.
Nesse período, a organização criminosa foi gerida por um modelo piramidal no qual José Márcio Felício, o Geleião, e César Augusto Roriz, o Cesinha, centralizavam todas as decisões e exerciam o cargo de “generais”. No final de 2002, o descontentamento dos integrantes da facção com as regalias e o excesso de violência dos “generais”, catalisado pela briga entre as mulheres dos dois líderes (e que resultou no assassinato da então esposa de Camacho, a advogada Ana Maria Olivatto), alçou Marcola ao poder.
Nesse momento, teve início a segunda fase do desenvolvimento do grupo, marcada pelo início da implementação do sistema empresarial na organização criminosa, mas ainda de crescimento lento devido aos ajustes no poder. Foi nesse período que Marcola descentralizou o comando ao indicar apadrinhados para a formação da Sintonia Final Geral, a cúpula do PCC. Essa fase termina com os ataques de 2006.
Em maio daquele ano eleitoral, a cúpula da segurança de São Paulo, informada sobre possíveis rebeliões e receosa do impacto delas na campanha do presidenciável Geraldo Alckmin, decidiu recolher todas as lideranças do PCC em um só presídio, o PII, em Presidente Venceslau. Em um só dia, foram transferidos 765 presos. Além de acabar com todas as investigações em andamento, uma vez que retirou todos os alvos de seus locais e cortou o acompanhamento de comunicação feito pelas policias Civil e Militar, Ministério Público e Polícia Federal, a medida fez com que toda cúpula fosse reunida em um só local.
O objetivo das transferências, a quebra do comando e da articulação da facção, só seria pleno se, transferidos, os líderes fossem isolados e impossibilitados do acesso ao celular. O que se viu foi o contrário. Com medo das proporções alcançadas pelos ataques e rebeliões, o governo mandou uma comitiva para a PII, acompanhada de uma advogada da facção, para pedir que Marcola enviasse um sinal aos seus seguidores pedindo o fim dos ataques. Marcola diz não ter passado o sinal, mas confirma a indicação de outro integrante para executar a missão. Executada, acabaram-se os ataques e os líderes acomodaram-se na nova casa, sem punições ou sanções que pudessem mantê-los longe do comando da facção por muito tempo. Desse modo, o que restou à cúpula do PCC foi de posse de celulares e na companhia dos “irmãos” da cúpula, traçar o plano de ação destinado a expandir os limites do grupo.
Dados do setor de inteligência do Ministério Público de São Paulo, primeira e única instituição a colocar no papel o tamanho, o modelo organizacional, métodos e números sobre o PCC, apontam para um resultado desastroso. Entre 2006 e 2010, o PCC se consolidou e expandiu-se consideravelmente. Em São Paulo, de todas as 152 unidades prisionais, 137, ou 90% delas, foram dominadas pelos 6 mil membros da facção presos. Do lado de fora, outros 1.800 integrantes começaram a pagar 650 reais como mensalidade e a comprar rifas de carros, apartamentos e casas. Somente com essa renda, 2 milhões de reais entraram nos cofres da organização criminosa mensalmente.
A fonte principal de arrecadação da facção é o tráfico de drogas. Segundo o Ministério Público, mesmo após três anos de combate à organização e denúncia contra 175 integrantes, ela continua a se expandir aumentando o volume de arrecadação e, hoje, lucra o dobro dos oito milhões arrecadados por mês enquanto era acompanhada pelos promotores, entre 2010 e 2013.
O lucro de causar inveja aos grandes empresários paulistas são resultado de uma gestão hierarquizada e extremamente organizada, subdividida em setores, chamados de Sintonias. Em última instância, encontra-se a Sintonia Geral Final, cúpula formada por Marcola e seus apadrinhados.
É essa cúpula, de forma colegiada, quem toma todas as decisões do PCC. Mas dentro da principal atividade da organização, o Progresso (tráfico), encontramos três instâncias. A primeira é a Disciplina: grupo ou integrante responsável por disseminar e fiscalizar a implantação da ideologia em um bairro ou cidade. Cabe ao Disciplina, a primeira decisão sobre problemas da comunidade onde a facção atua, resolução para brigas entre integrantes e cumprimento de punições. Na hierarquia o Disciplina deve reporta-se ao Sintonia Geral.
Esse grupo, ou membro único, da segunda instância cuida de uma grande região ou cidades vizinhas e deve se reportar ao Sintonia Final. Última instância antes da cúpula, os Sintonias Finais são líderes responsáveis pelas grandes regiões da capital paulista, pelas subdivisões do estado paulista estipuladas por DDD e pela baixada santista.  Devido à expansão para outros estados e países produtores de drogas, como Paraguai e Bolívia, foram criadas também a Sintonia Geral dos Outros Estados e a Sintonia de Outros Países.
A comunicação entre as sintonias se dá por meio de Pipas (bilhetes) entregues por visitas, celulares e advogados. Quando é preciso mandar um aviso para todos membros, a cúpula emite um Salve: informe gestado em consenso pelos integrantes da cúpula. O Salve é utilizado para informar uma decisão sobre assuntos da comunidade, como um dos últimos apreendidos pelo Gaeco neste mês, no qual a cúpula informa não ser responsável por ataques a ônibus em São Paulo. “Somos contra a opressão da comunidade e quem usa os ônibus é a comunidade”, dizia o Salve. Ou avisar sobre punições ou sanções como no caso do menino Brayan Yanarico Capcha, de 5 anos, filho de bolivianos morto no ano passado porque chorava durante assalto a sua casa em São Matheus, zona leste da capital paulista. Após o Salve informar ser proibido assassinato de crianças durante a prática de crimes, dois acusados foram mortos em presídios paulistas.
Essa eficiência da comunicação é um dos pontos fortes da facção e é capaz de fazer a informação chegar ao líder de cada setor, sem atravessadores. Com a ajuda de uma rede de advogados instalados na Sintonia dos Gravatas, pagando até 2 mil reais para mulheres visitarem presos levando informações e 25 mil reais por um celular, a cúpula e os Sintonias Gerais e Finais conseguem comandar toda a cadeia produtiva da organização mesmo trancafiados no sistema penitenciário. Desde a negociação da pasta base de cocaína e Bob Esponja (maconha), no Paraguai e Bolívia, comandada pela Sintonia de Outros Países, passando pela mistura e distribuição para diversas cidades e estados, até a Sintonia da FM( pontos de venda nas ruas).
Todo dinheiro arrecadado no Progresso, Progresso 100% (tráfico dentro dos presídios), da Cebola (mensalidade para membros em liberdade) e das Rifas são administrados pela Sintonia Financeira, formada apenas por membros de alta confiança da cúpula. Como reserva para momentos de dificuldades, a facção criou as chamadas Minerais, espécie de cofres preenchidos com 1 milhão de reais cada. As interceptações telefônicas do Ministério Público apontam a existência de ao menos sete Minerais escondidas em imóveis comprados pela facção. A localização delas é desconhecida.
Embora a descentralização do poder no PCC seja real, a cabeça por trás de toda essa estruturação burocrática é Marcola. Dos 46 nos de idade, Marcola passou metade em presídios de todo Brasil. Nesse período, a inteligência do jovem ladrão de banco foi afinada por intermináveis leituras. Diz ter lido Lênin, Mao Tse-Tung, Friedrich Nietzsche, Dante Alighieri, Maquiavel e outros milhares de autores.
Sem poder contar com Deus, morto em seu livro predileto, Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche, Marcola conquistou a confiança da massa penitenciária ao fazer o PCC ocupar o espaço abandonado pelo Estado. Sagaz, o ex-batedor de carteira do centro de São Paulo, percebeu a força angariada na prestação de serviços básicos aos detentos.
Assim como deveria caber ao governo paulista, o PCC dá as condições mínimas de seguranças, higiene e saúde aos detentos. Nos presídios superlotados, é a facção a provedora do sabonete, do colchão, cigarro e do espaço mínimo nas celas. È ela quem garante também a solução dos problemas internos entre detentos, primeiro por meio de conversas e depois com as devidas punições.
Não bastasse, a Sintonia da Ajuda cuida exclusivamente da entrega de cestas básicas e da manutenção de uma renda mínima para membros da facção em situação de dificuldade e famílias de integrantes mortos em caminhadas (missões). Cabe ao PCC também, por meio da Sintonia dos Ônibus, providenciar transporte aos familiares de detentos residentes longe das cidades nas quais estão presos. Ou seja, o PCC faz o que o Estado na faz.
O resultado prático do poder exercido pela facção é a proibição do uso de crack nos presídios, os trâmites instaurados para execuções de desafetos e a burocracia criada para o “bom andamento” do dia a dia no crime. Em uma das duas vezes nas quais caiu no grampo telefônico, Marcola chegou a afirmar ter sido essas ações capitaneadas por ele e não o governador Geraldo Alckmin, o responsável por diminuir os homicídios em São Paulo.
Na outra ponta, depois de cumprida a pena e sem ter sido ressocializado pelo Estado, o detento livre e convicto da falta de oportunidades é obrigado a voltar ao crime, dessa vez sob a tutela da facção, para abastecer os cofres do PCC com o tráfico de drogas ou desempenhando alguma função administrativa na rua. Dessa forma, abastece o ciclo vicioso do crime.
É essa expertise organizacional, aliada aos erros de planejamento das forças de segurança paulistas e a descrença dos detentos em relação ao poder público, que sustenta a afirmação do promotor segundo a qual o PCC vai se tornar hegemônico em todo país.
Mesmo a cúpula alojada em São Paulo, a facção já possui tentáculos em todos os estado do país. São 2.398 membros espalhando o “método PCC” pelo Brasil. Os estados com maior concentração de integrantes, Paraná, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, servem de exemplo para como se deu a gênese do crescimento pelo país. É o caso do Paraná, com 626 membros. O estado, a partir de 1997, recebeu em seus presídios lideranças enviadas pelo governo paulista. O objetivo era desarticular o grupo, mas teve efeito contrário, apenas contribuiu para sua expansão.
Outro exemplo interessante é o caso do Maranhão, e da penitenciária de Pedrinhas. Após contato com maranhenses presos em presídios federais, a facção exportou seu modelo para o estado e deu início a primeira fase de domínio representada pelo enfrentamento aos rivais e rebeliões em busca de melhores condições nos presídios.“Se analisarmos, é o que houve em São Paulo até 2006, o primeiro passo antes do PCC se tornar hegemônico”, explica o promotor.
O objetivo é bem claro e está documentado na última versão de seu estatuto do grupo, apreendido pelo Ministério Público. “O Comando não tem limite territorial, todos os integrantes que forem batizados são componentes do Primeiro Comando da Capital e, independente da cidade, Estado ou País, todos devem seguir nossa disciplina, hierarquia e estatuto”.
Da sua parte, o Ministério Público de São Paulo tentou desarticular a cúpula da facção. Entre 2010 e 2013, as seguidas apreensões, permitidas pela ação controlada utilizada pelos promotores, atingiram os cofres do PCC. A situação chegou ao ponto de membros serem flagrados em conversas nas quais reclamavam de, pela primeira vez na sua história, terem um déficit mensal de quatro milhões.
Na visão dos promotores do Gaeco, primeiro era preciso enfraquecer a facção. Em três anos, foram presos 144 integrantes, 5 toneladas de drogas e 47 fuzis. O segundo passo, com todas as provas e detalhes da organização criminosa no papel, seria ver concedida a prisão preventiva de 112 integrantes e a transferência de 32 membros da cúpula para o RDD. Segundo o Ministério Público, a surpresa da ação executada em um só dia desencadearia uma quebra no comando do grupo.
Isolado pelo Tribunal de Justiça, pelo governo estadual e forças de segurança, o Ministério Público viu os pedidos de prisão e RDD serem negados. Na opinião dos promotores, esse foi mais um dos erros cometidos no combate à facção e propiciou o surgimento de planos de fuga como este agora em andamento.
O fato é que enquanto o PCC vivia sua primeira fase de organização, bastava ao Estado dar as condições mínimas de segurança, higiene e saúde aos detentos para, em seguida, investir na educação de sorte a ressocializá-lo. Isso esvaziaria o poder de Marcola e sua facção ainda incipiente. O custo político seria mínimo. No segundo momento, além das questões anteriores, seria preciso combater a organização que já mostrava seu poder de persuasão dos presos e começava a se expandir. O custo político maior, mas ainda possível de se enfrentado.
Hoje, o problema deixou de ser apenas do governo paulista e, caso queiram reverter essa situação, todos os governos estaduais e o federal precisarão revolucionar o sistema penitenciário, investir pesadíssimo em inteligência e unificar o combate à facção. Aliado a isso, é mais que necessário a criação de varas especializadas no julgamento de organizações criminosas para garantir a segurança necessária para o judiciário defender suas posições. Entretanto, nesse momento, o que eles mais temem é o fato do custo político ser altíssimo. O Ministério Público de São Paulo apontou qual o caminho a ser seguido. Agora, a população aguarda uma posição das forças de segurança de São Paulo. Mas é bom lembrar que a decisão é política, não jurídica.
fonte carta capital

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